Abraço caudaloso
Gregorio Duvivier – 2/2/2015
Amizade entre cronistas é um perigo: todo papo
esbarra em crônica, já que toda crônica é uma espécie d e papo. Foi numa
conversa com o Antonio Prata, meu ex-amigo-platônico – "ex" não por
não ser mais amigo mas por não ser mais platônico – que a bola começou a
quicar. "Isso dá uma crônica", ele disse. Mas nenhum dos dois
escreveu, por escrúpulos de estar roubando a ideia do outro. Eu, que tenho
menos escrúpulos e menos ideias, resolvi escrever.
Palavras, percebemos, são pessoas. Algumas são sozinhas: Abracadabra. Eureca.
Bingo. Outras são promíscuas (embora prefiram a palavra "gregária"):
estão sempre cercadas de muitas outras: Que. De. Por.
Algumas palavras são casadas. A palavra caudaloso, por exemplo, tem união
estável com a palavra rio – você dificilmente verá caudaloso andando por aí
acompanhada de outra pessoa. O mesmo vale para frondosa, que está sempre com a
árvore. Perdidamente, coitado, é um advérbio que só adverbia o adjetivo
apaixonado.Nada é ledo a não ser o engano, assim como nada é crasso a não ser o
erro. Ensejo é uma palavra que só serve para ser aproveitada. Algumas palavras
estão numa situação pior, como calculista, que vive em constante ménage, sempre
acompanhada de assassino, frio e e.
Algumas palavras dependem de outras, embora não sejam grudadas por um hífen –
quando têm hífen elas não são casadas, são siamesas. Casamento acontece quando
se está junto por algum mistério. Alguns dirão que é amor, outros dirão que é
afinidade, carência, preguiça e outros sentimentos menos nobres (a palavra
engano, por exemplo, só está com ledo por pena – sabe que ledo, essa palavra
moribunda, não iria encontrar mais nada a essa altura do campeonato).
Esse é o problema do casamento entre as palavras, que por acaso é o mesmo do
casamento entre pessoas. Tem sempre uma palavra que ama mais. A palavra árvore
anda com várias palavras além de frondosa. O casamento é aberto, mas para um
lado só. A palavra rio sai com várias outras palavras na calada da noite:
grande, comprido, branco, vermelho – e caudaloso – fica lá, sozinho, em casa,
esperando o rio chegar, a comida esfriando no prato.
Um dia, caudaloso cansou de ser maltratado e
resolveu sair com outras palavras. Esbarrou com o abraço que, por sua vez,
estava farto de sair com grande, essa palavra tão gasta. O abraço caudaloso deu
tão certo que ficaram perdidamente inseparáveis. Foi em Manoel de Barros.
Talvez pra isso sirva a poesia, pra desfazer ledos enganos em prol de encontros
mais frondosos.
Palavras, percebemos, são pessoas. Algumas são sozinhas: Abracadabra. Eureca. Bingo. Outras são promíscuas (embora prefiram a palavra "gregária"): estão sempre cercadas de muitas outras: Que. De. Por.
Algumas palavras são casadas. A palavra caudaloso, por exemplo, tem união estável com a palavra rio – você dificilmente verá caudaloso andando por aí acompanhada de outra pessoa. O mesmo vale para frondosa, que está sempre com a árvore. Perdidamente, coitado, é um advérbio que só adverbia o adjetivo apaixonado.Nada é ledo a não ser o engano, assim como nada é crasso a não ser o erro. Ensejo é uma palavra que só serve para ser aproveitada. Algumas palavras estão numa situação pior, como calculista, que vive em constante ménage, sempre acompanhada de assassino, frio e e.
Algumas palavras dependem de outras, embora não sejam grudadas por um hífen – quando têm hífen elas não são casadas, são siamesas. Casamento acontece quando se está junto por algum mistério. Alguns dirão que é amor, outros dirão que é afinidade, carência, preguiça e outros sentimentos menos nobres (a palavra engano, por exemplo, só está com ledo por pena – sabe que ledo, essa palavra moribunda, não iria encontrar mais nada a essa altura do campeonato).
Esse é o problema do casamento entre as palavras, que por acaso é o mesmo do casamento entre pessoas. Tem sempre uma palavra que ama mais. A palavra árvore anda com várias palavras além de frondosa. O casamento é aberto, mas para um lado só. A palavra rio sai com várias outras palavras na calada da noite: grande, comprido, branco, vermelho – e caudaloso – fica lá, sozinho, em casa, esperando o rio chegar, a comida esfriando no prato.
Um dia, caudaloso cansou de ser maltratado e resolveu sair com outras palavras. Esbarrou com o abraço que, por sua vez, estava farto de sair com grande, essa palavra tão gasta. O abraço caudaloso deu tão certo que ficaram perdidamente inseparáveis. Foi em Manoel de Barros. Talvez pra isso sirva a poesia, pra desfazer ledos enganos em prol de encontros mais frondosos.
(Disponível em <http://www1.folha.uol.com.br/colunas/gregorioduvivier/2015/02/1583811-abraco-caudaloso.shtml>. Acesso em: 3 mar. 2015)
Comentários
Postar um comentário